Especial
SUSTENTABILIDADE

Brasília tem clima e relevo favoráveis. Mas, ao longo dos últimos 60 anos, desde o projeto inicial, não pensou a bicicleta como meio de transporte, para além do lazer nos fins de semana

linha do tempo animada.

Ciclovias em busca de uma cidade

Uma das definições do brasiliense nas quatro primeiras décadas de Brasília era a de um ser dividido em cabeça, tronco e rodas. Na cidade de vias largas e distante de projetos de mobilidade urbana, o morador da capital da República podia ser confundido com uma criatura metade homem, metade carro.

A referência foi perdendo sentido ao longo dos últimos anos. Brasília foi pioneira nas faixas de pedestres e ampliou de certa forma, a partir de iniciativas da própria sociedade, a consciência sobre mobilidade. Mas ainda está longe de ser cidade sustentável.

A capital tem clima e relevo favoráveis. Mas, ao longo dos últimos 60 anos, desde o primeiro projeto da cidade, em 1957, nunca conseguiu pensar as bicicletas como meio de transporte efetivo, para além do lazer nos fins de semana e feriados.

Ao longo desta reportagem, o Correio apresenta as razões para tal atraso, desde o plano inicial de urbanismo, passando por obras recentes e controversas, como as da Copa de 2014, que não completaram o tal legado de mobilidade.

Luis Nova/Esp.CB/D.A Press
Eixão do lazer: ciclistas aproveitam o espaço aos domingos

A partir de pedaladas e entrevistas com profissionais ligados à gestão ambiental, ciclistas e familiares de mortos no trânsito — além do cruzamento de dados geográficos e populacionais —, um dossiê foi montado em capítulos.

Aqui, há uma média de 1 bicicleta para cada 10 habitantes, um número que parece razoável a princípio, mas distante ainda de países europeus como a Holanda, onde determinadas regiões têm mais bikes do que gente e o veículo de duas rodas foi incorporado ao cotidiano do cidadão. Selo: Made in Brasilia - Aniversário de Brasília Brasília neste caso é um ensaio, onde ciclovias parecem procurar uma cidade.


Capitulo I

A fragilidade

A física explica a fragilidade do ciclista nas vias públicas e demonstra, a partir de cálculos, a desigualdade cotidiana entre carros e bicicletas durante uma colisão. A força do choque transfere, a partir do instante inicial, quase toda a velocidade do veículo maior, o motorizado, para o menor, o de duas rodas, durante uma batida lateral, por exemplo.

Falta de espaço e alto índice de atropelamentos estimularam Amsterdam a se transformar

Um carro de tamanho médio, pesando 1 tonelada, e a 100km/h, ao bater na bicicleta, é capaz de arremessar um ciclista a 45m de distância. Enquanto o veículo menor praticamente não altera a velocidade do maior, o ciclista alcançará cerca de 95km/h no instante da batida, imprimindo aceleração tão brusca que poderá levá-lo à morte antes mesmo de tocar o chão.

A forte e repentina aceleração pode levar o ciclista a rompimentos de órgãos internos, como o rim e o baço. O fígado, que tem em média 1,7kg, pode chegar a mais de 30kg no momento da colisão. Depois do primeiro impacto, o choque com o chão pode causar lesões definitivas na cabeça ou na coluna.

Quais os tipos de vias?

  • Ciclovia
    É uma via isolada da pista por meio de uma barreira física, que pode ser uma mureta, postes, meio-fio.
  • Ciclofaixa
    É quando uma faixa é pintada na pista sem qualquer separação física.
  • Ciclorrota
    É um caminho que mostra uma rota recomendada para os ciclistas.
  • Ciclovia operacional
    Uma via isolada temporariamente por agentes de trânsito. É o caso do Eixão do Lazer aos domingos.
  • Espaço compartilhado
    Pelo Código Brasileiro de Trânsito, quando não houver ciclovia ou ciclofaixa, carro e bicicletas devem ocupar o mesmo espaço viário, com o veículo maior deixando uma distância mínima de 1,5m na ultrapassagem.

Os números mostram aqueles que estão mais desprotegidos no trânsito. E aqui não há uma relação de guerra entre motoristas e ciclistas, mas a responsabilidade por defender uma cidade mais sustentável para crianças, adultos e idosos. E não apenas durante o lazer. Bicicleta pode e deve ser vista como coisa séria quando se trata de política de transportes.

Quanto mais bicicletas circulando nas cidades, mais segurança no trânsito de uma forma geral. A utilização das bikes está diretamente ligada a planos de mobilidade eficientes, o que garante o ambiente seguro para pedestres, ciclistas e passageiros de ônibus ou carros. A economia dos gastos em saúde ocorre de forma direta, beneficiando todos os grupos da sociedade.

Em Amsterdam, na Holanda, por exemplo, a política de mobilidade a partir da década de 1970 foi pensada a partir dos protestos de famílias que perderam pais e filhos atropelados por carros. A dor acabou vinculada a causas ambientais, o que levou as autoridades, já imersas em equações infindáveis para o problema dos transportes, a se dedicarem a abrir ciclovias.

No Brasil, a escalada das mortes dos ciclistas deixou 1.311 famílias de luto em 2015, segundo o Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. Número pouco menor que o de 2014, quando 1.357 ciclistas estiveram entre as 43.780 vítimas das ruas. O custo dos acidentes também é alto. Em 2015, o Sistema Único de Saúde (SUS) gastou R$ 13,2 milhões com a internação de 10.935 pessoas por causa de acidentes com bicicletas.

No Distrito Federal, 739 ciclistas morreram nas ruas, entre 2000 e 2017, segundo dados do Departamento de Trânsito (Detran). Só até junho deste ano, foram 11. As rodovias concentram o maior número de vítimas: 306, entre 2003 e 2014. Embora as estatísticas não apontem a quantidade de acidentes com mortes provocadas por motoristas embriagados, o número de pessoas autuadas por dirigirem sob efeito de álcool aumentou 4.834 apenas no primeiro trimestre deste ano.

E a combinação álcool e direção é dramática para os ciclistas. Em abril, o aposentado Edson Antonelli, 61 anos, por exemplo, morreu ao ser atingido por uma jovem de 20 anos que dirigia sob efeito de álcool no Lago Norte. A motorista responde o processo em liberdade. Veja a reportagem.

Em abril deste ano, Edson Antonelli morreu ao ser atropelado no Lago Norte

Ainda em 2003, o número crescente de ciclistas vítimas do trânsito estimulou a criação da OnG Rodas da Paz. A diretora administrativa da OnG Renata Florentino aponta a conscientização dos motoristas e o investimento em políticas públicas como caminho para a redução das estatísticas.

“A gente teve um ano de pico em que era um ciclista morto por semana, mas temos uma tendência de queda. Não é utópico pensar que podemos chegar ao número de mortes igual a zero”, acredita Renata. Para isso, ela dá a receita: “Motoristas atentos e sem achar que o ciclista é um folgado que não deveria estar na pista. Brasília é uma cidade onde isso pode se tornar realidade”.


Capitulo II

O olhar

Planejada e construída entre as décadas de 1950 e 1960, Brasília nasceu no período do fortalecimento da indústria automobilística no país. O desenho de ruas largas e de alta velocidade projetava a circulação de automóveis.

Lúcio Costa decretava no projeto: "Não se deve esquecer que o automóvel, hoje em dia, deixou de ser o inimigo inconciliável do homem, domesticou-se, já faz, por assim dizer, parte da família. Ele só se 'desumaniza, readquirindo vis-à-vis do pedestre, feição ameaçadora e hostil, quando incorporado à massa anônima do tráfego’”, destaca trecho do Memorial do Plano Piloto de Brasília.

A capital foi criada com ares de futurismo e viu no carro a solução para a mobilidade. Sessenta anos depois, o modelo inspirado nos norte-americanos não se sustenta e exige alternativas. As vias largas não garantiram a fluidez imaginada e a capital vive a deterioração de um sistema: congestionamentos, poluição atmosférica, transporte público ineficiente.

“As cidades se estruturaram para o automóvel e Brasília surgiu com essa proposta. Era o boom do automóvel, um objeto de luxo, que dava mobilidade e Brasília simboliza isso para o Brasil”

Pastor Willy Gonzáles Taco Professor do departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB)

Dados do Plano Diretor de Transporte Urbano (PDTU) de 2010 apontam para o colapso do trânsito em 2025 caso não sejam tomadas medidas transformadoras. Além de um Índice de Qualidade do Ar cada vez mais prejudicial à saúde da população mais vulnerável.

Na década de 1970, enquanto na Europa, países como a Holanda e a Alemanha se transformavam para abrir espaço às bicicletas, a recém-construída Brasília chegou a ter um plano cicloviário, mas ficou só no papel.

E, mesmo quando as ciclovias começaram a surgir, nos anos 2000, a lógica “rodoviarista” foi dominante. “Deram espaços, mas sem repensar a estrutura da cidade. Não adianta só colocar uma ciclovia paralela às ruas. Não tem como você incluir o pedestre e a bicicleta em uma cidade sem prejudicar o carro. E nunca se teve coragem de tirar a prioridade do automóvel”, comenta Yuriê Baptista César, diretor da União dos Ciclistas do Brasil (UCB).

Atualmente, a malha cicloviária no DF é estimada em 420km, sendo 355,7km de ciclovia, 7,6km de ciclofaixa e 56,8km de acostamento ciclável. Segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios 2015-2016 (PDAD-DF), há 388.637 bicicletas, mas apenas 1,22% das pessoas a usam como meio de transporte para ir ao trabalho — e, dessas, 70% se locomovem dentro da própria Região Administrativa, 12%, no Plano Piloto e 18%, em outras localidades.

O professor do departamento de Estudos Ambientais da UnB Gustavo Souto Maior explica que Brasília segue o caminho errado quando se trata de incentivo a outras formas de deslocamento. “Tem que tirar o carro da rua e, para isso, oferecer um transporte de qualidade”, afirma. O professor conta que, em cidades como Copenhagen, na Dinamarca, boa parte da população se desloca de bicicleta ligada a outros meios de transporte, como ônibus e metrô. “Precisamos de investimentos em transporte público e não motorizado.”


Capitulo III

A mentalidade

Fernando e Bárbara na Holanda: compras no mercado de bike

O casal Bárbara Korte e Fernando Kleiman deixou Brasília há dois meses para morar em Delft, na Holanda. Ali, eles conheceram um dos melhores sistemas cicloviários do mundo. Pessoas de todas as idades usam a bicicleta para ir ao mercado, à faculdade, ao shopping e até ao barzinho à noite. “A bicicleta é uma necessidade. Por mais que o brasileiro pense o contrário, o sistema público de transporte não é tão bom. Então, a bicicleta é a forma mais rápida e segura de ir aos lugares”, conta Bárbara, que pagou 100 euros (cerca de R$ 370) em uma bicicleta usada, ao chegar na cidade.

Para Bárbara, Brasília tem tudo para se tornar uma cidade ciclável, por ser plana e ter um clima agradável praticamente o ano todo. Mas, para isso, precisaria mudar muita coisa, principalmente, o pensamento dos motoristas. “No Brasil, o motorista vê a bicicleta como se ela não tivesse o direito de estar na rua, como se a pista fosse só do carro. Aqui, na Holanda, isso não existe. Há respeito. Quando acontece um acidente, a culpa é do carro, porque a prioridade é do ciclista. Tanto que a maioria das pessoas nem usam capacete.”


Capitulo IV

A prioridade

Brasília é apontada por especialistas como um lugar propício para o uso de bicicleta, entretanto, a prioridade dos governos no Distrito Federal continua sendo os automóveis e a ampliação das vias para os carros. O próprio Plano Plurianual (PPA) 2016-2019 traça um diagnóstico razoável sobre a necessidade de investimentos em mobilidade ativa, mas, entre as ações previstas, o foco continua sendo o carro.

“Poucas cidades teriam mais facilidade de serem providas de ciclovias e ciclofaixas que Brasília. As mais importantes foram adaptadas ao carro. São Paulo fez mais ciclovias que qualquer outro lugar e lá não tem a mesma facilidade que aqui. Temos mais espaço”, avalia o professor Cláudio José Pinheiro Villar de Queiroz, do Departamento de Projeto, Expressão e Representação em Arquitetura e Urbanismo da UnB.

O urbanista critica as ciclovias que passam por cima de calçadas e confundem pedestres e ciclistas. “Ciclofaixa é a solução habitual em todas as cidades. Usar as superquadras só se houver necessidade, porque você vê velhinhos caminhando, jovens senhoras com bebês, pessoas passando, e colocar trânsito de bicicleta em calçada causa constrangimento”, afirma Queiroz.

“Lutamos pela revitalização, pela instalação de placas e para que haja um respeito maior aos ciclistas. Tem que haver uma cultura para que a comunidade não use a ciclovia como passeio, uma vez que tem calçadas ao lado"

Marcos Cavalcanti Integrante do Pedala Recanto

No Recanto das Emas, o grupo Pedala Recanto, criado há dois anos, promove o uso da bicicleta entre os moradores da região administrativa e cobra do governo melhorias nos projetos de mobilidade urbana. Buracos, descontinuidade das ciclovias e barreiras que freiam o fluxo são algumas das dificuldades que eles enfrentam.


Capitulo V

O projeto

Planejada na década de 1990, Águas Claras também não pensou na bicicleta como transporte

Nos últimos anos, a capital teve algumas oportunidades de se reinventar em termos de mobilidade, como as obras realizadas para a Copa de 2014, a reconstrução da Estrutural e até o surgimento de Águas Claras, mas, em todas elas, o foco ainda foi o automóvel.

Agora, em mais uma tentativa de reorganizar e pensar a ciclomobilidade, o governo pretende remodelar cerca de 300km de ciclovias e planejar a construção de outros 200km. O urbanista e sócio da TcUrbes, Ricardo Corrêa, vencedor da licitação que prevê um diagnóstico e um novo plano cicloviário no DF, comenta que Brasília tem condições de se tornar amiga da bicicleta.

“A cidade é um organismo vivo. Nenhuma está engessada. Tem que se reinventar. A questão cicloviária não é quilometragem. É ter uma rede que permita a você ir de um lugar a outro em segurança. Que você possa sair da casa, ir à escola deixar seu filho, ir à padaria, ao banco”

Ricardo Corréa Urbanista sócio da TcUrbes

Atualmente, Rio Branco é a capital que tem a maior rede cicloviária por habitante do país. Em 2006, a prefeitura implementou 60km de ciclovias e ciclofaixas e hoje são 160km de vias cicláveis projetadas e mais de 110km em funcionamento para 350 mil habitantes. “O primeiro passo para uma cidade ser considerada ciclável é você ter uma rede, mas tem de ser analisada individualmente. Paris, por exemplo, se tornou uma cidade ciclável diminuindo a velocidade do carro. O modelo holandês é dos 8 anos aos 80. Tem que entender a cidade”, comenta Corrêa.


Capitulo V

A união

O meio ambiente e a bicicleta não são meros exercícios de retórica. É uma necessidade, para além do controle da poluição, mas pela essência da sustentabilidade, na qual homem, planeta e desenvolvimento se misturam.

Hoje, os veículos são responsáveis pela emissão de 49% dos gases de efeito estufa no território do Distrito Federal, representando praticamente metade das emissões. Com uma frota de 1,6 milhão de veículos, o desafio é estimular o brasiliense a deixar o carro em casa. No ano passado, houve crescimento de 2,6% no número de carros.

Os carros são responsáveis por 49% das emissões dos gases de efeito estufa no DF

Anualmente, o Instituto Brasília Ambiental (Ibram) monitora a qualidade do ar em três locais do DF: Rodoviária, Engenho Velho na Fercal e Fábrica de Cimentos (Ciplan). Os números são considerados regulares em relação ao material particulado total (partículas de sólido ou líquido suspensas no ar) na região da Rodoviária, por exemplo.

O ano recorde de poluição foi em 2013, quando a concentração atingiu o patamar de 173,78 microgramas de partículas por m³. Houve uma redução considerável nos dois anos seguintes, mas voltou a crescer no ano passado (104,53 µg/m³).

A concentração de fumaça preta, depois de anos em alta, apresenta redução desde 2014, quando a frota de ônibus foi renovada. O ano passado registrou uma concentração de 18,41 µg/m³ contra 25,25 µg/m³, no ano anterior.

Sinônimos de bicicleta

  • Magrela
  • Camelo
  • Bici
  • Bike
  • Kalanga
  • Magrelinha
  • Velocípede

De acordo com o simulador on-line da Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP), se a capital conseguisse substituir 20% das viagens de carro por bicicletas, haveria 8% de redução no tempo gasto nos deslocamentos; 14% de redução no consumo do espaço viário; 16% menos consumo de energia; 14% menos poluentes emitidos e 14% menos CO2 no ar, o principal gás do efeito estufa.

Em outro simulador feito na Universidade Federal do Paraná (UFPR) é possível identificar os benefícios da bike para o corpo, o bolso e a sociedade. Se uma pessoa pedalasse, de casa ao trabalho, três vezes por semana, em uma distância de 10km, queimaria uma média de 156 mil calorias por ano e evitaria 696,31 kg de gases poluentes na atmosfera no mesmo período.

A mudança também ajudaria no controle das despesas: economia de R$ 1.174 por ano. Além de contar, mensalmente, com R$ 200 a mais no orçamento, que seriam destinados ao gasto com a manutenção do carro. A ferramenta também calcula os benefícios para quem utiliza o transporte público. Diante de uma passagem a R$ 5, a economia anual seria de R$ 1.584, ou R$ 132 ao mês.

A cidade que lutou pela faixa de pedestres tem tudo para se tornar amiga da bicicleta

De acordo com o diretor da União dos Ciclistas do Brasil (UCB) Yuriê Baptista César, um carro a menos na rua significa muito para a construção de um mundo melhor. “Quanto menos gente andando de carro, menos emissões de poluentes, menos barulho, menos vagas de automóveis, menos doenças e uso dos leitos de hospital. Quem pedala se ajuda a ter economia, saúde e produz benefícios para a sociedade”, diz.

Quando Brasília passou a olhar para o pedestre, mesmo no pequeno espaço de 4x13m das faixas, fez uma pequena revolução no trânsito. O desafio agora é repensar a mobilidade. Com clima e relevo favoráveis, a capital pode ser o melhor exemplo do país de uma relação harmoniosa entre homens, carros, bicicletas e meio ambiente. E não só nos fins de semana e feriados. Pois ninguém está aqui apenas a passeio.